Me dispus a escrever uma reportagem em virtude da semana que marca o
Dia do Orgulho LGBT (28 de junho). Como qualquer jornalista ávido
por notícias e boas histórias, procurei um ''personagem'' (como
chamamos na linguagem da profissão), para compôr um perfil. Eis que
encontrei Thais Cunha, que gentilmente se colocou a disposição para
que eu pudesse relatar suas vivências.
Quando pergunto sobre o processo de descoberta da sexualidade e
autoaceitação, ela me responde em um 'clique' em nossa “reunião”
moderna no whatsapp. Thais, a personagem, me prega uma grande peça.
Logo de cara mostra que não é Cássia mas é tão “fera, bicho,
anjo e mulher” quanto. “ Eu sempre me senti diferente, desde
pequena eu odiava a obrigação que eu tinha de ser a "menininha"
e de ter que ter aptidões todas como femininas. Brincava de bola na
rua escondido, jogava as barbies em cima do telhado e aos 14 me vi
atraída por um mulher. Mas só me aceitei lésbica com 17, antes disso
me forcei a relacionamentos heterossexuais que me deixaram marcas um
tanto quanto ruins.”
Ao nascer
nós somos encaixados em categorias, se é menino tem que usar azul,
mas se é menina tem que usar rosa. O menino pode brincar de
carrinho, bola, super-herói, mas ai dele se quiser brincar de
boneca. Curioso, talvez tivéssemos menos casos de mães solteiras e
filhos abandonados se deixássemos nossos garotos aprenderem a cuidar,
a serem sensíveis, a chorar.
As nossas
meninas cabe o não como resposta. Não pode sentar de pernas
abertas, não pode jogar futebol, não pode ter amizade com meninos,
elas simplesmente não podem. Quando crescem os apontamentos não
mudam, não podem usar saias curtas, não podem namorar quem
desejarem. Ai daquela mulher que não se reconhecer como bela,
recatada e do lar.
A primeira das mulheres a não aceitar a condição de submissão ao
homem foi Lilith, a primeira mulher de Adão. Demonizada na Bíblia
(e aqui não quero entrar em polêmicas religiosas), ela é acusada
de ser a serpente que levou Eva a comer o fruto proibido. Séculos
depois a sociedade continua a culpabilizar as “Liliths” que não
se enquadram no padrão de feminilidade e submissão.
Valores
machistas ligados a religiosidade se perpetuam ao longo da história.
Na Grécia, o homem considerado a 'imagem e semelhança' de Zeus era
cultuado como ser perfeito, e os relacionamentos entre homens eram
plenamente aceitos. Em contrapartida, as mulheres, seres inferiores,
deviam servir a função de meras reprodutoras.
Há
relatos de que na ilha grega de Lesbos, ocorriam iniciações sexuais
entre mulheres. Porém, somente eram enviadas à ilha aquelas que
deveriam se casar em breve, para que aprendessem novas maneiras de
dar prazer aos homens, mesmo que ali ocorressem apenas relações
homossexuais.
Por todo um histórico de machismos, o amor entre mulheres é um ato
revolucionário. Entretanto, como a educação das meninas as leva a
esperar pelo príncipe encantado, perceber-se apaixonada por uma
mulher pode ser um tanto perturbador, como conta Thais. “No
primeiro momento eu me senti o máximo. Me imaginava como os
personagens de novela, como os atores de filmes, dai do nada me veio
o peso de pensar "isso é tão errado", mas o sentimento de
que era natural já me acalmava, mesmo com dificuldade de aceitar. O
tempo todo meu medo era do que os outros iam pensar ou fazer comigo
quanto isso. Nunca pensei que era algo errado demais ou ruim demais,
mas eu tinha uma melhor amigo que foi criado comigo e era gay também
e via como era tratado, eu sentia medo daquilo acontecer comigo, eu
via notícias no jornal e me imaginava naquela situação, eu sabia
que ser gay não era errado mas que o mundo condenava isso e na minha
cabeça eu ia morrer cedo se eu assumisse logo. Além do medo da
família, decepcionar meus pais e parentes era uma parte que me
angustiava, eu não conseguia imaginar o que iriam dizer que eu
desesperava.”
Foto: Arquivo Pessoal de Thais Cunha
O apoio
familiar é essencial durante o lento e doloroso processo de experiência da sexualidade. Contudo, um núcleo familiar unido
e acolhedor não faz parte da rotina de todos os LGBTs. Segundo censo
realizado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social
(SMADS) da Prefeitura de São Paulo, entre 5,3% a 8,9% da população
de rua residente na capital paulista pertencem a comunidade LGBT, e a
ampla maioria mora nas ruas por causa da exclusão familiar.
Felizmente o caso de Thais Cunha é diferente, ela conta com o apoio
dos pais e do irmão. “Meus pais atualmente me aceitam me acolhem
muito bem, e tenho um irmão de 11 anos que sabe de toda a situação
e me da conselhos amorosos, apesar da idade ele me ouve muito. Meu
avô materno foi o primeiro a saber e so me disse uma coisa: Pra eu
me relacionar com quem me valorize. Minha mãe ja conheceu ex
namoradas, viajamos todos juntos, hoje eu sou uma parte como outra
qualquer da minha família.”
Uma família estruturada e amorosa certamente torna uma pessoa LGBT
mais forte para lidar com os desafios na escola, no trabalho e nos
relacionamentos. Apesar das recentes conquistas como a
despatologização da homossexualidade (1990) e a aprovação dos
direitos à adoção e casamento civil, a homofobia persiste. O
Brasil está em primeiro lugar no triste ranking dos países que mais
matam travestis no mundo, segundo levantamento feito pela ONG
Transgender Europe.
Aos 15 anos de idade, Thais esteve cara a cara com a homofobia,
descobriu que ódio tem rosto e não mora longe. “Eu tinha 15 anos
e tava na fase de sentir atração mas não ter coragem de nada, meu
jeito se vestir contava muito sobre mim já e eu ainda jogava bola.
Dai eu nunca tinha beijado nenhum menino do setor como as colegas e
começou a ter boatos sobre mim, dai numa noite indo no supermercado
comprar o refrigerante pra janta como de costume, entre duas vielas
dois homens numa moto me pararam e levaram pro beco, tinha um pedaço
de pau la e me chutaram e bateram com isso, com o capacete, e falavam
o tempo todo "vai apanhar igual homem, é isso que você quer
ser né ?", fiquei um bom tempo com a marca do pé de um deles
nas minhas costas, só contei pra um amigo na época, uma costela
chegou a trincar, eu protegi só o rosto. Cheguei em casa e fui
direto pro quarto e só falei que tentaram me roubar. Eu me recordo
muito bem da voz deles e dos dizeres, e a partir disso eu tive medo e
aceitei me relacionar com um vizinho meu, eu tentei ser hétero porque
achei que na próxima iam me matar se eu insistisse em continuar como
eu era.”
A partir
desse momento Thais refugiou-se. Buscou abrigo nas letras e a poesia
não lhe negou o acalento de que tanto necessitava. Notou pela
primeira vez que a ponta do lápis poderia transportá-la para outros
mundos, especialmente para o seu próprio mundo interior. Diz ela que
seus poemas são como válvulas de escape “é aquele grito preso na
garganta, desde muito cedo me apeguei a escrita, influência linda do
meu avô que é poeta, então eu sempre usei isso para desafogar as
angústias e sentimentos.” conta
De onde
vem os sentimentos senão de nós mesmos? De dentro para fora, do
nosso mundo particular para os mundos dos outros? O amor de mãe pode
ser o maior de todos, o mais sublime e que desconhece limites, mas o
mais instintivo talvez seja o amor próprio. Amor este que só de ser
amor não pode ser confundido com egoísmo ou mesquinhez. Prefiro
classificá-lo como uma imensa vontade de se sentir bem para estar
bem com os outros.
Por isso
quando questiono Thais sobre a experiência que mais a marcou em toda
a sua vivência enquanto pessoa LGBT, ela mostra novamente seu lado
anjo, mulher, só dela e não de quem quiser ao dizer que do amor não
tem medo, tem medo de quem brinca de saber amar:
Caio, tropeço no
medo, o receio mora onde a certeza deveria estar.
Fujo, corro pra
longe porque foi o que aprendi aqui nesse lugar.
Penso que esse
tormento não acaba porque eu não deixo o ponto final finalizar.
Sou
vírgula falante,
anúncio ambulante fator determinante do que a
maldade alheia é capaz de me causar.
Não! Meu medo é o segredo que
engoli pra não contar,
do amor não tenho medo, tenho medo é de
quem brinca de saber amar.”
- Cunha
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